segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Empirismo, Inatismo e Educação

Empirismo, Inatismo e Educação


Durante muito tempo, a Filosofia tentou solucionar um dilema: como podemos explicar a natureza dos princípios racionais?
Inicialmente, podemos afirmar que a razão / o raciocínio se constitui como uma forma de conhecimento discursivo que se faz por meio da palavra (faculdade de julgar). Para compreender o mundo, para organizar o caos, a razão supera as informações concretas e imediatas que recebe, organizando-as em conceitos ou idéias gerais que, devidamente articulados podem levar à demonstração e a conclusões que se consideram verdadeiras.
O Conhecimento discursivo é o conhecimento mediato. É  aquele conhecimento que se dá por meio de conceitos = é o conhecimento que se dá/ se opera por etapas, por encadeamento de idéias, de juízos e raciocínios que levam a determinadas conclusões. A razão precisa realizar abstrações (abstrair = isolar, separar de) e a lei cientifica é abstrata
Durante séculos, a filosofia oscilou entre uma resposta fundada no inatismo e outra desenvolvida a partir do empirismo[1]
Para o empirismo, o saber tem inicio pela experiência dos sentidos / das sensações. Os objetos exteriores a nossa mente nos excitam. As sensações se reúnem e formam uma percepção; isto é, percebemos uma coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de sensações diversas. As idéias, que nos foram trazidas pela experiência, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os pensamentos. É a experiência que marca no nosso espírito as idéias. A razão vai associá-las, combiná-las ou separá-las, criando os nossos pensamentos. Para os defensores do empirismo,



[1] Nós podemos apreender tanto real pela razão como pela intuição. O encaminhamento do texto seguirá os critérios indicados pela lógica da razão e não pelos da intuição. 


“a razão, a verdade e as idéias racionais são adquiridas por nós pela experiência. Antes da experiência,dizem eles, nossa razão é como uma folha em branco; uma tabula rasa onde nada foi gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever na folha, gravar na tabula, dar forma à cera. A razão é uma maneira de conhecer e a adquirimos (por meio da experiência sensorial) no decorrer de nossa vida.”[1]

Em suma, o conhecimento para o empirismo só tem inicio após a experiência sensível. A reflexão se reduz à experiência interna do resultado da experiência externa produzida pela sensação. Há um grande destaque ao papel do objeto. E a razão se apresenta subordinada ao trabalho da experiência. Como exemplos de teorias que podem ser identificadas com o empirismo podemos citar o positivismo, o behaviorismo e a instrução programada.
Segundo Marilena Chauí, segundo o inatismo,

“ao nascermos trazemos em nossa inteligência não só os princípios racionais mas também algumas idéias verdadeiras, que, por isso, são tambéetm inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas idéias, é adquirida por nós pela experiência.”[2]

O inatismo não parte da realidade do mundo. Busca no sujeito os critérios para o estabelecimento da verdade. No idealismo / subjetivismo, o intelecto é superior aos sentido. As idéias são intemporais e permanentes. A realidade está sempre primeiramente no sujeito e se apresenta na forma de idéias. As idéias gerais não derivam do particular, mas já se encontravam no espírito como instrumento de fundamentação para a apreensão de outras verdades. Por serem inatas, não estão sujeitas ao erro e o critério para se chegar a verdade está em nosso próprio espírito-razão[3].
Mesmo nos dias de hoje, existe a crença em “uma essência humana” que propõe-se efetivar.. Primeiro, supõe-se que o homem a tenha e que ela seja imutável; segundo, supõe-se que ela seja tal qual foi formulada por aquela cultura, naquele tempo. E é atribuído à educação a função social de realizar um certo ideal do que o homem deve ser

Dentre os filósofos que se destacam pela abordagem inatista podemos citar Platão e Descartes. Este último tratou do tema principalmente nas obras Discurso do método e Meditações metafísicas.
Nessas obras, Descartes nos mostra que o nosso espírito possui três tipos de idéias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade. São elas: idéias adventícias, idéias fictícias e idéias inatas.
As primeiras, as adventícias, são aquelas que nos chegam a partir da nossa sensação. São percepções e lembranças. São idéias que nos vêm por termos tido experiências sensíveis das coisas a que se referem.

“São, de um lado, as idéias das qualidades sensoriais – a cor, sabor, textura, tamanho, lugar, etc. – e, de outro, as idéias das coisas percebidas por meio dessas qualidades. São também as opiniões formuladas a partir dessas idéias ou nossas idéias cotidianas e costumeiras, geralmente enganosas ou falsas, isto é, são opiniões recebidas e que, em geral, não correspondem à realidade das próprias coisas.”[4]

Já o segundo tipo, as idéias fictícias, são aquelas que elaboramos a partir da nossa imaginação, criatividade e fantasia. Nós somos capazes de compor seres fantasiosos e mágicos com partes de seres que existem verdadeiramente. Quem nunca imaginou fadas, cavalos alados, dragões ou super-heróis?
Tais idéias nunca poderão ser consideradas verdadeiras, visto que não tem correspondência com o mundo concreto.
O terceiro tipo (e o mais importante) é composto pelas idéias inatas. Estas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Por exemplo, os princípios da razão – identidade, não-contradição, terceiro excluído, razão suficiente – são idéias inatas. Também são inatas idéias denominadas pelo pensamento cartesiano de noções comuns da razão: “o todo é maior que as partes”,  por exemplo.
São também inatas as idéias simples (= idéias não compostas) conhecidas por intuição[5] intelectual (por exemplo: o cogito – “penso, logo existo”). Por serem simples, as idéias inatas são conhecidas por intuição e são também o ponto de partida para a dedução racional e indução, que nos possibilita conhecer as idéias complexas ou compostas.

“As idéias inatas, diz Descartes, são ‘a assinatura do criador’ no espírito das criaturas racionais, e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Visto que as idéias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a elas, podemos julgar quando uma idéia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as idéias fictícias são sempre falsas (não correspondem a nada fora de nós).”[6]  

Vocês poderão se perguntar qual a relação do conceito filosófico do inatismo com a educação e a prática pedagógica? Quem poderá nos responder é o filosofo Paulo Ghiraldelli Jr., com a sua obra História da educação brasileira[7].
Anteriormente, nós já havíamos citado as visões positiva e negativa da infância. Para o filósofo,
“Essas visões da infância têm uma íntima ligação com as posições filosóficas elaboradas no inicio dos tempos modernos. Do resultado da relação dessas posições filosóficas com as finalidades da educação postas por essas configurações origina-se ao menos duas grandes filosofias da educação: a filosofia (da educação) de René descartes (1596-1650), tipicamente iluminista, e a filosofia (da educação) de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), com indicações que apontam para o Romantismo. Essas concepções filosóficas não aparecem apenas como ligadas exteriormente a tais configurações, mas ajudam efetivamente na própria formulação conceitual dessas configurações de infância e de educação”.
Tanto para Descartes quanto para Rousseau a tarefa do pensamento e, em especial, a tarefa da filosofia, é a busca da verdade por meio da razão – nisso eles se mantém adeptos de uma definição clássica da filosofia. Perguntam, então, o que impede ao homem saber decidir se um enunciado é falso ou verdadeiro. Criam uma explicação para o erro.
Para o cartesianismo, o erro está na imaginação, nas sensações e, principalmente, na preponderância da vontade sobre o entendimento, fazendo com que os juízos apressados. O homem assim faz, segundo tal acepção, porque ainda não conseguiu se libertar de atitudes que são próprias das crianças – atitudes infantis. Nesse caso, a atitude de dar crédito ao sonho e as sensações, não sabendo usar a razão despida de imagens, é vista como típica da infância o fato de a vontade impulsionar o homem a tomar decisões antes de o entendimento ter formulado o que é correto, também é uma atitude infantil. Assim, a infância é tomada como não sendo uma boa fase. Quando mais cedo o homem escapar dela, menos levará consigo resquícios de atitudes que atrapalharão o seu juízo. A infância, portanto, deve passar o quanto antes.
Rousseau, diferentemente, acredita que a busca da verdade, antes de passar pela razão, depende de instâncias morais. Para o rousseaunismo, o oposto da verdade, o erro, não é somente a falsidade, mas a mentira. E quem não mente? A criança não mente – diz o rousseaunismo. Pois para Rousseaua natureza é intrinsecamente boa e a criança é o ser ainda não maculado pela cultura, o que está mais próximo da natureza, e, portanto, o mais apto a poder chegar a verdade. Assim, quanto mais tempo a infância durar, mais o homem adulto ficará contaminado pelo vírus da ingenuidade e da bondade, essenciais na vida adulta para, não maculando a visão moral, não macular a razão.
Como essas filosofias da educação moderna – iluminista e romântica – se consubstanciam em pedagogias, no sentido mais estrito desse termo? No caso da educação e, digamos, no caso da educação sistemática e escolar ou para-escolar, a filosofia da educação moderna prepara procedimentos pedagógicos em um padrão mais simplificado, normativo. São esses padrões que, em geral, denominamos de pedagogia, no sentido restrito e mais comum.”[8]

GHIRALDELLI JR faz referência a duas imagens. A primeira datada é um sinete da Escola gratuita de gramática de Lowth. Datada de 1554, no dístico interno lemos: “quem poupa a vara odeia a criança



[1] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p. 71.

[2] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p. 69.

[3] Percebemos aqui a crença na idéia da existência de uma natureza humana: algo essencialmente humano. A doutrina que defende que certos particulares têm certas propriedades essencialmente ao passo que têm outras propriedades apenas acidentalmente é conhecida como essencialismo. Por exemplo, na cidade grega de Atenas, viveu um famoso filosofo: Sócrates. Podemos afirmar que Sócrates é essencialmente humano, mas só acidentalmente vivia em Atenas. Então, Sócrates não poderia não ser um ser humano, mas poderia não ter vivido em Atenas. Ou seja, o fato de ser homem é necessário. Enquanto que a nacionalidade desse homem é contingente.
Entretanto, muitas criticas foram feitas a tal abordagem. Isso porque, no mais das vezes, os empreendimentos educacionais estabelecidos a partir dessa teoria são equívocos na prática, pois resultam defendendo interesses particulares, locais, como se fossem universais. Por exemplo, quando o grego pensa “o ser” ou “as virtudes humanas”, pensa o “ser grego” e as “virtudes gregas”
[4] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p.70.

[5] Uma Intuição é uma forma de conhecimento imediato (= feito sem intermediário; “visão súbita”). É  inefável; inexprimível. Ao mesmo tempo, é importante por ser o ponto de partida do conhecimento, a possibilidade da invenção, da descoberta, dos grandes “saltos” do ser humano. A intuição pode ser dividida em três tipos básicos:  intuição sensível – é o conhecimento imediato que nos é dado pelos órgãos dos sentidos: sentimos calor; vemos a cor das flores; ouvimos o som da música; intuição inventiva – é a do sábio, do artista, do cientista, quando repentinamente descobrem uma nova hipótese, um tema original; intuição intelectual – é a que se esforça por captar diretamente a essência do objeto.

[6] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p.70.
[7] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006.
[8] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006.-p. 20.


figura 1
A segunda imagem é um quadro de 1793. intitulado “Professora Republicana.

 figura 2

Diz GHIRALDELLI JR que tais imagem podem gerar uma certa estranheza. Quem conceberia nos dias de hoje um estabelecimento de ensino que propaga a idéia de castigos físicos como forma pedagógica de ensino. Também, é estranho uma imagem de uma professora mantendo uma relação tão próxima e tão individualizada. Para o autor, “são gravuras representativas de certo cuidado especifico com as crianças, um cuidado que depende da existência, na mentalidade das pessoas, de alguma noção de infância e, portanto, de algum tipo de consenso sobre educação.”[1]
“O sinete da ‘Escola Gratuita de Gramática de Louth’ mostra que o professor impõe aos seus alunos uma disciplina que, no limite, contempla a punição física. Tal punição tem como objetivo tornar a vontade infantil disciplinada. Se, em Descartes, a ultrapassagem do entendimento ou da razão pela vontade é exatamente o que conduz o ser humano ao erro, então nada melhor para a educação se pudermos serenar os ânimos do desejo, que é corpóreo, de modo que a vontade possa se exercer com comedimento. E estaremos dando à vontade a chance de se comportar racionalmente, com autonomia, isto é, como poder racional sobre si mesma. Torná-la autônoma – mesmo que no limite isto implique em punição física, é colaborar para a atuação do entendimento mais livre e mais capaz, portanto, é colaborar com a libertação do individuo em relação ao erro. Com a vontade perfeitamente racional, e os desejos dominados, o entendimento pode julgar com clareza e distinção. O aprendizado do conhecimento verdadeiro, o que”. inclui a capacidade de poder julgar o que é verdadeiro e o que é falso, depende de uma disciplina da razão que é também aprendida – a razão perfeita é a harmonia entre vontade racional e entendimento. O professor, com regras externas, colabora para a internalizarão de regras, possibilitando o surgimento do homem a partir da finalização da infância.
O quadro ‘Professora Republicana’, ao contrário do sinete, mostra a fruição em comum de um texto. Educador e educando comungam um texto (um exame visual minucioso poderia deixar ver que o texto é a ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem, usada como cartilha). Todavia, há certas ambigüidades na gravura, muito provavelmente propositais, que dizem mais do que o titulo do quadro. O garoto parece muito jovem para saber ler. Seu rosto é o de uma criança que, nos dias de hoje, chamaríamos de pré-escoar. Então, o papel que ambos seguram é simbólico (ainda mais em se tratando mesmo da ‘Declaração dos direitos do Homem’). Por outro lado, a professora é mesmo professora? Ela contém traços de mãe e de moça sensual. Aparece como mãe na medida em que está próxima demais da criança; aliás, poderíamos até arriscar que a criança está no seu colo. Ela é sensual, mostrando-se atrativa, convidando para a comunhão de uma história, para o compartilhamento de uma atividade aconchegante. Cabelos levemente desalinhados, brinco exposto e uma claridade sobre o pescoço que força o nosso olhar para os seios. Os seios, por sua vez, através do jogo de luz e sombra do quadro ganham relevo. Ou seja, a moça é alguém com quem fazer algo íntimo, como por exemplo, ler uma historia ou apreciar uma gravura, deve ser uma coisa bastante agradável. Por fim, não é uma moça comum, nem uma mãe comum. O quadro lembra, para uma boa parte das pessoas, muitas vezes menos as gravuras clássicas e mais o quadro da Virgem Maria com o menino Jesus. E isto santifica a relação entre ambos – a relação é prazerosa, mas antes de tudo pura, pois há pureza de coração em ambos os parceiros. A relação é mesmo muito íntima. Se há algum aprendizado, ele não está sendo feito de modo direto, pois a moça, a adulta, não está falando algo à criança, mas ao contrário, ambos apreciam algo que está no papel, algo que, de certo modo, só eles pode ver, e nós não inteiramente! Ambos, garoto e professora, contém sorrisos monaliseanos em suas bocas. Há uma satisfação na comunhão do que está no papel, o que seria o texto. As mãos de ambos se juntam para segurar o papel. A educação que está ocorrendo ali depende da experiência da comunhão de subjetividades puras e sinceras. Caso contrário não haverá educação. Aliás, em se tratando do texto ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem’, o termo ‘experiência da comunhão’ significa uma experiência subjetiva e intersubjetiva ao mesmo tempo, ou seja, uma psique que se enlaça a outra por meio de um elemento comum posto socialmente: a realização de uma sociedade livre. A verdade não está aparecendo para eles por causa de uma disciplina imposta ‘de fora para dentro’, mas por causa de uma disciplina que está sendo trazida ‘de dentro para fora’. A verdade surge da relação honesta, íntima que cada um tem com o que está no papel e que cada um tem com o outro; ambos são companheiros de viagem.
O primeiro quadro diz respeito a um modelo de ensino em que poderíamos encontrar a tradição cujo representante seria o cartesianismo; e o segundo quadro diz respeito a um modelo de ensino no qual poderíamos ver a tradição cuja inspiração seria rousseauísta. O primeiro, tem ver com o que mais tarde foi batizado como ‘pedagogia tradicional’. O segundo, tem a ver com o que mais tarde se autodenominou de ‘pedagogia nova’ (isso em meados do XIX e mais propriamente no século XX). Essas pedagogias, assim representadas, são as versões populares da pedagogia moderna – elas são o nosso senso comum ocidental sobre as posturas pedagógicas possíveis. Em ambos os modelos, a instituição escola aparece como imprescindível.”[2]



[1] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006. p.22.
[2] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006. p.22-23.





CONCEITO, LINGUAGEM E FISICIDADE NA ARTE CONTEMPORÂNEA


CONCEITO,  LINGUAGEM  E  FISICIDADE   NA  ARTE  CONTEMPORÂNEA

Texto de Ronaldo Campos publicado originalmente na revista Augustus, 

Referência: http://www.unisuam.edu.br/augustus/pdf/ed13/rev_augustus_ed_13_11.pdf


O advento da arte moderna, principalmente,com as primeiras exposições impressionistas e com as vanguardas históricas gerou na crítica es-pecializada um complexo de culpa e de intimida-ção, uma vez que ela não foi capaz de reconhece r o valor da nova arte que surgia. “A instituição da novidade como valor fundamental da arte tornou-se uma espécie de terrorismo que inibe o juízo crítico e garante a vigência de qualquer idéiaidiota” (GULLAR, 1993, p. 15).
Em contrapartida, essa abrangência absoluta e a não-funcionalidade da arte na atual condição cultural levou a um esvaziamento do seu sen-tido para a maior parte do público fruidor. Con-seqüentemente, o processo de contemplação/fruição se tornou para a maioria das pessoas algo altamente subjetivo, individualista e solipsista. Aparentemente, tem-se a impressão de que no mundo atual não há mais espaço para a obra artís-tica na sua forma tradicional (pintura e escultura). Observam-se, com freqüência, sinais cada vez mais eloqüentes da ausência e da impossibilidade de apreensão da linguagem do objeto artístico contemporâneo. A arte estaria se perdendo no i-material, no vazio, isto é, estaria vivendo a morte do seu ser arte.
Esse tipo de abordagem niilista tornou-se mais freqüente quando toda a radicalidade da obra de arte, do processo de formação do objeto artístico e do mercado de arte moderna/contemporânea foi absorvida e integrada nas estruturas capitalistas de produção/consumo. Todavia, este processo foi seguido concomitantemente por uma série de rea-ções (ainda mais radicais) por parte de artistas, historiadores e críticos de arte vinculados às poéticas da modernidade. A “arte é apenas o conceito de arte, que se separa de qualquer experiência da realidade, de qualquer finalidade social ou ideo-lógica, de qualquer noção histórica da arte, de qualquer teoria da arte ou estética” (GULLAR, 1993, p. 16). Uma dessas reações foi a retoma-da, atualização e radicalização da atitude van-guardista proposta pelas poéticas do ready madede Marcel Duchamp e do objet trouvé dos surrea-listas. Nessas poéticas situa-se grande parte da produção artística contemporânea.
Por exemplo, a pop art não só recusou como também provocou o escárnio e o insulto às for-mas tradicionais das belas artes. Inspirado pelos ideais do neodadaismo, o artista elege e atribui valor artístico a um objeto de consumo típico da sociedade industrial. Ele

"troça polemicamente do mundo industrializado que o rodeia, expõe os achados arqueológicos de uma contemporaneidade que se consome dia a dia, petri-fica no seu irônico museu as coisas que vemos todos os dias sem nos darmos conta do fato de funciona-rem aos nossos olhos como feitiços". (ECO, 1986, p. 206).

O artista busca o acaso para encontrar inten-ções de arte naquilo que não é intencional. Ele “descobre analogias entre os comportamentos da arte e os do acaso, e coloca sobre os segundos as intenções do primeiro” (IDEM, p. 184): o objeto não existe como obra de arte, antes do olhar do artista ter incidido sobre ele. Ou seja, tirando do seu contexto habitual e subtraindo a sua função concreta (o valor que possui para a sociedade) pa-ra repropô-lo, numa condição de imunidade, co-mo um objeto avaliável apenas no plano estético, dando-lhe, porém, a entender que a passagem para o nível estético não é senão a sua última degradação, com a qual a estupidez macroscópica do objeto torna-se emblemática da estupidez da sociedade de consumo.
No processo de desmaterialização das formas tradicionais das belas artes, ao se apresentar objetos típicos da sociedade capitalista (como uma roda de bicicleta ou um suporte de garrafas) ou de estruturas da natureza como sendo as novas formas artísticas, os artistas desse tipo de poética não terão reintegrado a arte do seu tempo num contexto social? Ou então, eles não terão iniciado democraticamente todos os fruidores na apreciação de novas relações entre forma, uso e linguagem?
Ou ainda, celebrando um protesto individualista, esses artistas se tornaram, em ultima análise, o modelo desejado pela própria sociedade contra a qual aparentemente protestavam? Alguns dirão que a rendição da produção artística à ditadura do consumismo capitalista ou à poética do acaso gerou um tipo de arte que se remete ao conceito de nada proposto por Malevich, reduzindo a pintura à aniquilação da pintura, a escultura à aniquilação da escultura. Um sintoma claro desse processo foi o aparecimento de maneira regular das pinturas monocromáticas: telas inteiramente brancas ou inteiramente negras. A preocupação era, sobretudo, com a superfície da tela e com a natureza do pigmento aplicado. Sua abordagem pode ser caracterizada como uma extrinsecação física, como um estudo dos fatos de uma superfície bidimensional.
Nas telas (e nas formas) monocromáticas de Ad Reinhardt aparentemente não há “nada a ver”, mas pouco a pouco, descobrimos que há muito a olhar: “o elemento mesmo da dupla distância, de uma ‘profundidade rasa’, em que o cromatismo do Obscuro trabalha entre um signo de profundidade e uma afirmação diferencial de zonas pintadas, sempre referida à superfície” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 194), nos leva a partir do questionamento do estatuto da obra de arte a uma nova delimitação da forma artística. 

Forma? Espírito, espírito das formas, formas das formas? Forma das formas, formalismo, uniformalidade? Uma forma? Ciclos de estilos, arcaicos, clássico, formas tardias? Formas rompidas, impressionismos, formas vazias? Má forma, boa forma, forma correta, incorreta? Segue a forma imunda a função-lucro? Forma sem substância? Sem fim? Sem o tempo? (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 209).

O objeto artístico contemporâneo não precisa de justificativas elaboradas a priori e externamente: ele simplesmente existe. Está aí e pronto. É preciso “sentir a alma, sem ter de explicar por palavras, e representar esta sensação” (WEITEMEIER, 2001, p. 15). Espera-se que o fruidor também responda fisicamente, percebendo a pintura apenas como base na evidência visual do que está ali, sem procurar qualquer outro tipo de significado.

Situando a arte num nível pré-lingüístico e prétécnico, a atividade do artista reduz-se ao gesto, a obra à matéria não-formada, mas ainda assim animada e significante. A arte já não tem relação com a sociedade, com suas técnicas e linguagem; é regressão a partir do objeto, existência em estado puro e, como a existência pura é a unidade ou a indistinção de tudo o que existe, na matéria o artista realiza sua realidade humana (ARGAN, 1992, p. 450).

Qualquer busca de uma intencionalidade simbólica a priori nos desviaria do rumo; a imagem pode ter mil significados ou nenhum. É a própria obra de arte que nos fornecerá os instrumentos e a chave de leitura para a sua interpretação. É necessário buscar nela mesma a sua linguagem interna.

A forma se oferece à contemplação no próprio ato de se mostrar como tal, e diante dela nada resta a fazer senão deter-se admirando-lhe a harmonia, pois suas partes vivem da vida do todo, e a economia instituída pela lei de coerência que a governa lhe expungiu e cortou as partes supérfluas, superabundantes e anormais e nela integrou as partes que faltavam
ou eram incertas e imperfeitas. E gozável é, por isso, a foram nessa sua harmonia, na sua aderência à finalidade que ela é em si mesma, na sua perfeição interna que não se preocupa com referências extrínsecas, no seu caráter definido e determinado, irrepetível e inconfundível, na sua vida e equilíbrio e adequação recíproca entre as partes e o todo (PAREYSON, 1993, p. 187-188).

Portanto, há apenas duas possibilidades, em torno das quais trabalham os artistas ditos conceituais, que aceitam a identificação entre arte e reflexão sobre a arte. A primeira consiste em manter a distinção entre arte e linguagem, ao reconduzir a arte a sua elementariedade técnica (no caso da pintura, o ato de pintar paredes). Verificase o grau de existência que se realiza e se consome na operação artística ao se identificar o existir do artista com a sua metodologia de pesquisa, de modo que seja conduzida com meios da arte, ou seja, através de uma linguagem não verbal.

A segunda consiste na comunicação recíproca entre arte e escrita, partindo do postulado de que a linguagem escrita, em sua diferença estrutural em relação à linguagem verbal, pertence ao mesmo universo significante da arte. Desde as colagens cubistas com letras de alfabeto e os numerosos casos de letrismos figurativos, chega-se com Opalka, ao emprego das escritas como material de pintura, às diversas formas de poesia visual e até a proposta de deduzir um texto figurativo a partir do puro e simples desmanchar um texto literário.

Ad Reinhardt reduziria a pintura. Ao Negro extremo (Ultimate Balck Painting), quadrado perfeito de 1,50 m de lado: ‘uma pintura que é simplesmente uma pintura negra e nada mais’. Assim, de certo modo a pintura era uma definição de pintura, ou de sua redução extrema. Mas a geração seguinte descobriu um meio de levar isso ainda mais longe, o que marca o começo da arte conceitual. Joseph Kosuth (n. 1945) aproveitou a deixa dada por Reinhardt e apresenta a sua definição de pintura em dicionário, com 1,20 m de lado, em lugar de superfície negra (READ, 2001. p. 312).

Em suma, a saída para o artista é uma espécie de tautologia: a pintura é pintura, a arte é arte. Assim, se a arte se define fazendo arte – e fazer arte é também definir o que é arte –, o processo artístico não é apenas pensamento, mas, sim, pensamento formativo. Para Ives Klein, a atividade, etapa entre a idéia e o produto final, é parte imprescindível do processo de formação do objeto artístico. Em seu diário, ele escreve:

A arte deixou de ser [...] uma espécie de inspiração vinda não se sabe de onde, avançando ao acaso e representando apenas o lado externo e pitoresco das coisas. A arte é algo que existe de per se, complementada pelo gênio e obedecendo aos imperativos de uma necessidade vital e sujeita a uma predestinação transcendente (WEITEMEIER, 2001, p. 19).

O que não significa ser as poéticas da contemporaneidade destituídas de sentido e nada pode é possível ser dito, pois, falando-se delas, passarseia da esfera do agir para a esfera do discurso. Mas mesmo quando a arte tinha uma função, quantas coisas não foram ditas com as artes, embora pudessem ter sido ditas de outra maneira. Isso ocorria porque as artes estavam integradas num sistema cultural cuja estrutural era o discurso e a linguagem. Hoje, essa estrutura parece ter se perdido. Mas, assim mesmo, seria imprudente afirmar que a verdadeira e única linguagem da arte contemporânea é o silêncio. Pois, isso equivaleria destituir de sentido todo o processo de fruição
do objeto artístico.
A linguagem da pintura pode ser reduzida até concentrar-se simplesmente nas relações entre cores e formas, mas mesmo assim ela apresenta um sentido, uma linguagem, todas passíveis de serem apreendidas pela fruição: num primeiro momento poderíamos situar a fruição da obra artística contemporânea como o reconhecimento da forma em sua materialidade. O que significa que a obra de
arte deve ser apreendida inicialmente através da sua textura e da sua materialidade, em todas as sua particularidades especificas, na singular unidade realizada a cada momento, do material e de seus caracteres construídos ou significativos. 
O problema lingüístico continua a ser, sem dúvida, o problema crucial da cultura moderna e contemporânea. É sabido que a linguagem já não é mais o fator unificador utilizado por todas as disciplinas, para formar unitariamente uma cultura, mas constitui em si mesma uma disciplina especifica e autônoma. Por isso, a arte se enuncia e se auto-analisa com os meios da arte, e não da linguagem, que pode enunciar e analisar apenas a si mesma. Aparentemente, isso pode significar que quando o artista passa a refletir unicamente sobre o conceito de arte, sobre o seu ser em si, uma vez que já não pode existir nenhuma relação entre o trabalho do artista e o pragmatismo da sociedade, o próprio conceito de arte mostra-se insustentável, pois, como a arte é apreendida como uma entidade metafísica, podendo ser reconhecida apenas nas modalidades diferenciadas de seu fazer. Isto ocorre
não com a arte, mas com os tipos de arte que ao modo das disciplinas autônomas, são obrigadas a
se fecharem no círculo de suas metodologias, por não terem mais função no mundo.
Todavia

ao fazer arte, o artista não só não renuncia à própria concepção do mundo, às próprias convicções morais, aos próprios intentos utilitários, mas ainda os introduz implícita ou explicitamente na própria obra, aonde eles vêm assumidos sem serem negados; se a obra é bem sucedida, sua própria presença se converte numa contribuição ativa e intencional ao seu
valor artístico e a própria avaliação da obra exige que se o tenha em conta. Além disso, a arte não consegue ser tal sem a confluência dos outros valores nela, sem sua contribuição e apoio, de modo que dela emana uma multiplicidade de significados espirituais e se anuncia uma variedade de funções humanas (PAREYSON, 1989, p. 45).

O conteúdo e a linguagem de uma obra de arte são o seu próprio modo de formar. Longe de degradar o conteúdo espiritual em mero valor formal, tal afirmação tem em conta que a obra de arte não precisa procurar o próprio conteúdo e a sua própria linguagem em mero valor formal. O conteúdo da obra de arte deixa de ser visto como tema, para se prolongar em direção à inteira humanidade do artista e da cultura de sua época. 
A realização do valor artístico não é possível senão através de um ato humano, que nele condensa aquela plenitude de significados com que a obra age no mundo e suscita ressonâncias nos mais diversos campos e nas mais variadas atividades, e pelo qual o interesse despertado pela arte não é apenas uma questão de gosto, mas uma satisfação completa das mais diversas exigências humanas. Uma vez que os diversos valores contribuíram para a realização do valor artístico sem se dissolverem nele ou se anularem, e ainda, alimentando-o e revigorando-o, faz patê da própria qualidade artística da obra esta sua diversa funcionalidade humana, pela qual a fruição da obra de arte não só não é perturbada por apreciações de outra natureza ou pela utilização, mas as inclui e incorpora.
A obra de arte é necessariamente um estímulo a um processo de interpretação porque é essencialmente  o resultado de um processo de formação. Estes dois aspectos são na verdade um só: a sua capacidade de exigir interpretação consiste no fato de ser conclusão de um processo formativo.
É neste sentido que se deve enfatizar a compreensão da forma e da linguagem da obra de arte, pois não há conhecimento que também não seja interpretação, ou seja, um tipo de conhecimento ativo e pessoal. A sua natureza ativa explica o seu caráter produtivo e formativo e sua natureza pessoal explica como é possível que a interpretação seja ao mesmo tempo movimento, tranqüilidade, busca de sintonia, isto é, “incessante figuração”. Todavia, o ato de interpretar não deve ser entendido como algo exclusivamente “ativo”, nem o interpretante deve submeter passivamente a imposição de um objeto impenetrável. Pois. A interpretação é ao mesmo tempo receptividade que se prolonga em atividade e atividade em vista de uma receptividade: um agir que se dispõe a receber.
Interpretar é uma forma de conhecimento em que, de um lado, receptividade e atividade são indissociáveis e, do outro, o conhecimento é uma forma e o cognoscente é uma pessoa. Sem dúvida,
a interpretação é conhecimento – pois interpretar é captar, compreender, agarrar e penetrar. Ora, o conceito de interpretação resulta da aplicação de dois princípios fundamentais para a filosofia do homem: em primeiro lugar, o princípio graças ao qual todo o agir humano é sempre e ao mesmo tempo receptividade e atividade e, em segundo lugar, o principio segundo o qual todo o agir humana é sempre de caráter pessoal. Considerando o conhecimento à luz desses dois princípios, temos precisamente, a interpretação. Assim, toda ação humana não se caracteriza rigorosamente por ser criativa, visto que toda iniciativa é ou provocada ou sugerida e sempre começa quando o próprio movimento tem início, nunca nasce espontaneamente. Há, pois, na liberdade do homem, uma necessidade inicial – uma indicação de seu ser principiado, dos seus limites, da brevidade concreta do seu existir, daquela receptividade inicial e constitutiva – pela qual ele é dado a si mesmo e sua iniciativa é dada a si mesma. Se a arte contemporânea estivesse condenada a um silêncio perpetuo, a sua existência não teria sentido e fatalmente estaria destinada a se extinguir. Portanto, a estrutura da iniciativa daquele que busca a linguagem da obra de arte é congênita e essencial à sua atividade, é uma receptividade que a constitui e qualifica os seus próprios desdobramentos. Sendo, pois, contemplável e fruível, a obra de arte se oferece à contemplação, no próprio ato de se mostrar como tal. Diante dela, nada resta a fazer senão deter-se, admirando-lhe a harmonia, pois as suas parte vivem da vida do todo. Toda fruição se dá na harmonia formal, na sua aderência à finalidade que ela é em si mesma, na sua perfeição interna que não depende de referências extrínsecas, no seu caráter definido e determinado, irrepetível e inconfundível, na adequação recíproca de suas partes entre si e com o todo.
A obra de arte – seja um quadro figurativo, abstrato ou um acontecimento como um happening – é o que há de mais comunicável e aberto. A sua característica comunicativa se encontra em toda a sua realidade física, e não remete a um significado que a transcenda, porque a sua própria existência é o seu significado, ou seja, espiritualidade e fisicidade coincidem plenamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARGAN, Giulio. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

ECO, Umberto. Definição de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes. 1989.

PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da Formatividade. Petrópolis: Vozes, 1993.

READ, Hebert. Uma história da pintura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

WEITEMEIER, Hannah. Klein. Köln: Taschen, 2001.




Educação, qual o seu futuro?A antiga Escola Normal Modelo, um marco na História, texto original de Elza Moura


Texto publicado originalmente na Revista Pedagógica do Instituto de Educação de Minas Gerais

Ano 3 \ Número 3\ maio 2015 \ Belo Horizonte – MG


Educação, qual o seu futuro?A antiga Escola Normal Modelo, um marco na História


Elza Moura

Nos tempos de hoje parece que é proibido sonhar, planejar, recordar sentimentos delicados, pensamentos elevados são considerados ridículos, só valendo a grosseira, a ausência da ternura, a amizade... O que está acontecendo com a humanidade em que o ser humano está se desumanizando e se tornando inferior ao animal selvagem. Por onde anda a sua família? E a escola? Não mais existem?
Tenho pensado nas habilitações de agora que são construídas para o povo, cada vez menores e naquelas casas de antigamente, vastas, acolhedoras, com gesto de lar, contendo jardim, horta e quintal, não mais existem. Hoje é casa refeitório e dormitório, nem sempre refeitório e dormitório porque os filhos vivem em clubes ou em casas dos colegas. Lembre-se de um dos livros de leitura de grupo escolar, e Livro de Elza, em que a família, à hora da refeição, tinha o pai à cabeceira, falando sobre assuntos da vida: civismo, estudos, trabalho, responsabilidade. Hoje, esse quadro evocado deve causar risinho de deboche na mocidade atual. A vida mudou muito, mas os valores são os mesmos. A questão de espaço é crucial.
O Brasil é vasto, mas o povo vive em reduzidos espaços. Há pouco, viajando pela Região Metropolitana, fiquei revoltada, observando prédios construídos para a população de baixa renda e o desrespeito por esse povo com a terrível realidade da falta de um espaço verde, de uma horta comunitária, de um lugar para as crianças brincarem. Será que os moradores não têm filhos? E, se tem, quando não estão na escola, são prisioneiros nos minúsculos apartamentos?
Quando criança, estudei em um grupo escolar, que era uma chácara e que hoje perdeu seu grande terreno e está cheio de construção, sem o verde das árvores.
Quando aluna da Escola Normal Modelo, em uma das salas de aula, me deliciava, vendo da ampla janela, e lindo jardim, junto à rua Paraíba, hoje ocupado por feia construção. Deseducativo e assassinato da bela paisagem com suas árvores e flores. Em frente à Escola Normal Modelo, no jardim, havia uma romântica fonte. Por que foi destruída? O presente é produto do passado.
A nossa Escola Normal Modelo (EMN) dava-nos a ideia de largueza, de amplidão, de ausência de barreiras. E, naquele ambiente, a mocidade se movimentava para frente e para o infinito. Os professores participavam dessa movimentação, sem barreiras. No além estava a meta. Dentro do grande espaço físico, havia o espaço cultural, sem limites. Lembro-me ainda no Curso Preparatório, onde adquiríamos cultura, a atitude avançada da professora de História, não adotando um determinado livre: qualquer um que a aluna tivesse em casa seria o adotado. Esse gesto democrático marcou a minha formação. E, na história, é que fazem nascer discussões que iram contribuir para a liberdade do pensamento e a base para o futuro Curso de Aplicação onde seriam estudados as ideias dos grandes educadores. Bendita liberdade!
O espaço físico da nossa escola se projetou nos outros, na significativa formação completa das alunas. Não me lembro de nenhuma aluna ser admoestada ou punida por falta grave. Havia liberdade entre educador e educando, mas não desrespeito. Ninguém precisava ser o que não era, isto é, ser hipócrita, porque podia expor seus pensamentos com liberdade, com respeito mútuo. Lembro-me de um episodio que mostra o clima de liberdade e respeito naquela época: algumas alunas, sem aula, andavam pelos corredores, com excesso de barulho e batendo nas portas das salas de aula. Um professor, furioso com a atitude dessas alunas, chegou à porta, gritando contra elas. Uma aluna desse professor falou em voz alta: “Professor, o senhor não pode xingar essas alunas porque a sua filha está no meio”. Sem mais fala, o professor voltou à calma, e a aula continuou, e o bando indisciplinado foi em fretne,
Nos nossos dias já não há espaço físico, a criança e o adolescente vivem prisioneiros, em solidão. E muitos pais ricos pensam que o dinheiro é tudo e locupletam seus filhos de ricos presentes, mas o que, realmente os filhos desejam é carinho, atenção, presença. Esses filhos vivem isolados em seus aposentos com todos os aparelhos que a tecnologia oferece, mas esses aparelhos não têm coração, não sabem mostrar carinho, compreensão, diálogo. Os aparelhos dão respostas, não sabem lidar com as pessoas e se tornam agressivos ou recolhidos ao seu mundo. É claro que o uso da tecnologia é necessário, mas o que está ocorrendo é o desiquilíbrio nesse uso. Muitos acham um encanto a criana que ainda não sabe falar, mas já sabe usar o computador. Essa criança deveria estar brincando com uma boneca e não com máquinas. Seria oportuno as mães lerem sobre a importância do brinquedo no desenvolvimento geral da criança. Os grandes educadores, os notáveis psicólogos, tem muito que ensinar aos pais desavisados. Essa infância criada à sombra de máquinas, quando adulta, nada terá para recordar: nunca subiu em árvores, nunca jogou bolinhas de gude, nunca fez batizado de bonecas, nunca soltou papagaio, nunca bateu o martelo no dedo, construindo um carrinho, nunca fez cozinhadinho em fogão improvisado, nunca andou descalço e nem sujou a roupa em brincadeiras com amigos, nunca tem um cachorrinho de verdade, nunca tomou leite ao pé da vaca, nunca viu um pintinho saindo do ovo. Se não gosta de ler, então não se encantou com o Patinho Feio, a Gata Borralheira, as aventuras de Pinóquio, nunca foi o Sítio do Picapau Amarelo. Será que já ouviu falar em Cecília Meireles? Será que leu “A canção dos tamanquinhos”? Será que sabe que é um tamanco? No domínioda máquina mata-se a imaginação, sendo proibido sonhar.
Graças à ENM tive o espaço físico e espiritual, li os mais lindos livros da literatura infantil e adulta, além dos livros de pedagogia dos mais importantes pensadores daquela época e que hoje pontificam. E aprendi uma lição que tem norteado a minha vida: a grandeza dentro da simplicidade.
Em todos os tempos, grandes pensadores e pessoas de ação se preocuparam com a felicidade humana e deixaram marcas eternas. Voltemos um pouco a elas e meditamos no seu ledado. Quem sabe neles encontramos o que buscamos? Ei-los:
“Aquilo que guia o mundo não são as máquinas mas as ideias”. (Victor Hugo)
“Não acabe com suas ilusões. Quando elas se forem você pode ainda exitir, mas não estará mais vivendo”. (Mark Twain)
“O Homem não é nada além daquilo que a educação faz dele”. (Immanuel Kant)
“Se pudermos contar, através da arte, os impulsos agressivos do homem, a espécie sobreviverá à crise que atravessa (Johudi Menuhim)
“Essas crianças criadas em torno do cimento armado e ar condicionado, hipnotizadas desde pequenas por uma tela radiotiva chamada televisão, antes mesmo de saberem falar, estão condenadas à droga ou ao suicídio”. (Ernesto Sábato)
“Ai de nós, que perdemos a sabedoria pelo conhecimento e o conhecimento pela informação”. (T. S. Elliot)
“Estamos todos tão juntos e, no entanto, estamos morrendo de solidão.” (Albert Schweitzer)
“Sem desconhecer a aspereza dos nossos tempos, a poesia permanece no campo de existir como fenômeno de equilíbrio, compensação e recompensa, com a faculdade de preservar a infância”. (Henriqueta Lisboa)
“Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por lá antes de mim”. (Sigmund Freud)

“Quando tudo chegar ao caos, a escola ainda é a salvação” (Helena Antipoff) 



segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Reflexões sobre ética e estética Texto Ronaldo Campos


Reflexões sobre ética e estética


Texto Ronaldo Campos

Este texto não pretende esgotar o tema.  É um exercício que nasceu de uma tentativa de  de associar temas ou conceitos filosóficos da área da Estética e da Ética.  Pensei em lidar com três questões, a saber: primeiro, "a teoria da Ação Subjetiva"; segundo, "o Todo"; terceiro, "a mediação da Subjetiva".  Optei por trabalhar com apenas um dos vértices, o Todo, visto ser este um termo capital para várias teorias estéticas.
Há muito já se tornou lugar comum dizer que a estética é uma disciplina moderna, visto que o seu nascimento enquanto disciplina é datado do século XVIII, entretanto, tal ideia pode induzir a erros se se chegar ao ponto de negar o mundo antigo como fonte de inspiração para o estudo da arte, negando a fecundidade que no campo da estética possuem alguns conceitos ( os quais, originalmente, não se referiam a arte, pelo menos como a concebemos atualmente).  Dentre os muitos casos, pode-se destacar o conceito de todo  proposto por Aristóteles.  Este conceito perpassa diversas noções fundamentais para a filosofia da arte.  Por exemplo, nos diz Ernesto Grassi, “a téchne  abarca um todo que inclui em si uma pluralidade”.(Grassi, p.66)  Tal afirmação pode ser exemplificada logo no início da Metafísica:  “Saber que tal remédio cura este ou aquele doente constitui a experiência (empiria); porém saber o que tem curado todos os doentes cometidos por uma mesma doença, isto é arte (Téchne)” (981a, 7).  Assim, segundo Aristóteles, a téchne tem início quando um grande número de noções dispersas ministradas pela experiência se “transforma” numa só concepção geral que se aplica a todos os casos semelhantes.  Portanto, “a téchne descobre não somente o que é, como também e ao mesmo tempo o motivo  de ser assim.  A téchne adianta não então dois passos:  primeiro, o esboço do geral (teoria, motivação), que unifica a multiplicidade de objetos (explicação); segundo, o experimento, que prova a teoria esboçada, isto é, confirma ou nega. [...] A téchne, enquanto reúne em um esboço geral uma pluralidade diferencial, é conhecimento por meio do logos, que liga e explica.  Este conhecimento forma um todo”.(Grassi, p.67).  Mas afinal de contas como Aristóteles concebe o todo?  

Na Poética, o Estagirita define o todo como “aquilo que tem princípio, meio e fim”, isto é, o todo é composto de partes; entretanto, “o belo ser-vivente ou o que quer que seja que se  componha de partes, não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer.  Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto, um organismo vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão de conjunto”).  Observa-se, pois, que a noção de todo proposta por Aristóteles possui uma clara analogia com conceitos da natureza, com a vida, isto é, com a noção de organismo. 

          
Ao definir a vida, o Estagirita tem por ponto de partida realidades muito simples, das quais, obtém uma constatação inicial, que a primeira vista, pode nos parecer paradoxal, a saber: os seres vivos são compostos pelos mesmos elementos que os objetos inanimados.  Sobre este ponto, escreve Pierre Louis, “Aristóteles nada mais fez do que retomar as teorias dos seus antecessores.  Os gregos concebiam a natureza como um ser único que abarca a totalidade dos seres particulares.  Os primeiros físicos postularam a continuidade da vida e da matéria.  Representavam a existência de todos os corpos, vivos ou não, como expressão de uma vida imanente.  A oposição que para nós é banal, entre matéria inerte e seres vivos, não existia para eles em nenhum grau.  Eles não viam distinção de estrutura nem de natureza entre minerais, vegetais e animais.  Pensavam que tanto uns quanto outros eram feitos da mesma matéria”(Louis, p.186). 
            

Certamente, uma da fontes principais de Aristóteles foi a obra de Empedocles.  O filosofo de Agrigento foi o primeiro pensador que buscou resolver a aporia eleata, “tentando salvar, de um lado, o princípio de que nada nasce, nada perece e o ser sempre permanece e, de outro, os fenômenos atestados pela experiência.[...] Nascimento e morte são [...], respectivamente, mistura e dissolução de determinadas substâncias ingênitas e indestrutíveis, substâncias que permanecem eternamente iguais” - “as raízes do mundo”(Reale, 1993, p.133-134).  Seguindo o  mesmo raciocínio, observa-se que no tratado De la Génération et de la Corruption, Aristóteles descreve, de acordo com Pierre Louis, que as combinações possíveis entre os quatro elementos ( o quente, o frio, o seco e o úmido) limitam-se teoricamente a poucos tipos, pois, os contrários não podem combinar entre si; ou seja, é impossível que o quente e o frio ou o seco e o úmido se associarem num mesmo objeto.(Louis, p.186)  Tais composições - como por exemplo, o fogo que resulta da união entre o quente e o seco; ou o ar, união do quente e do úmido; ou a terra, o frio e o seco; ou ainda a água, o frio e o úmido - não resultam simplesmente de uma justaposição de elementos.  “A  combinação que eles produzem não consiste de um simples amontoado de partículas elementares, mas sempre é seguida de uma modificação qualitativa.  Desta modificação, nasce uma nova forma, na qual cada um dos elementos traz uma contribuição, e que apresenta uma coerência real, mesmo se ela é variável”(Louis, 187).
            

A primeira das sínteses se efetua diretamente das partículas elementares - fogo, terra, ar e água.  Estas se misturam e se combinam para gerar os tecidos - segundo Aristóteles, as homeomerias, pois, elas podem ser divididas em partes idênticas ao todo.  Desta forma, todos os tecidos possuem uma natureza  vital; sendo que a estrutura, por exemplo, de cada porção do tecido ósseo (por menor que seja ) é sempre a mesma.  Entretanto, tais partes (as homeomerias) não podem existir isoladamente, para que existam é necessário o seu vínculo ao organismo como um todo.  As  homeomerias se associam para formar o que Aristóteles chamou de anomeomerias, isto é, os órgãos, as viceras, os membros,... Estes não podem se dividir em partes idênticas ao todo.  A unidade dos membros e dos órgão é o ser vivo ele mesmo.(Louis, p.187-188)  “Cada um dos seres vivos possuem uma individualidade que o distingue do resto da espécie.  Todo indivíduo vivo possui um corpo que é único e que forma um todo”, deste modo, “o ser vivo possui uma existência própria que não pode ser fracionada sem o destruir”(Louis, p.188) Portanto, o todo é composto de partes, mas as partes do todo em si mesmas não podem ser compreendidas como o todo ele mesmo.  Assim, “o que é composto de alguma coisa, de tal modo que o todo constitui uma unidade, não é um amontoado, mas é como uma sílaba.  E a sílaba não é só as letras das quais é formada, nem BA é idêntica a B e A, nem a carne é simplesmente fogo e terra:  de fato, uma vez que os compostos, isto é, carne e sílaba, tenham-se dissolvido, não mais existem, mas as letras, o fogo e a terra continuam a ser.  Portanto, a sílaba é algo não  redutível unicamente às letras, ou seja, às vogais e consoantes, mas é algo diferente delas.  E assim a carne não é só fogo e terra, ou quente e frio, mas  algo diferente delas.  Ora, se esse algo devesse ser, também ele, um elemento ou um composto de elementos, dar-se-ia o seguinte:  se fosse um elemento, valeria o que dissemos acima ( a carne seria constituída por esse elemento com fogo e terra e por algo diferente, de modo que iríamos ao infinito); se fosse, ao invés, um composto de elementos, seria, evidentemente, composto não de um só, mas de vários elementos ( do contrário, estaríamos ainda no primeiro caso), de modo que dissemos a propósito da carne e da sílaba.  Por isso, deve-se reter que esse algo não é um elemento, mas a causa pela qual esta coisa determinada é carne, esta outra é sílaba, e assim para todo o resto.  E isso é a substância de todas as coisas: de fato, ela é causa primeira do ser”(Metafísica, 1041b, 11-28; Reale (1994), p.360-362)  Pois, a essência de um dado objeto ou coisa é aquilo que lhe é próprio e a nenhum outro pertence.
            

Em um outro exemplo, Aristóteles nos diz que “por matéria entende o bronze, por exemplo, por forma o contorno da sua figura, e pela composição dos dois a estatua, o todo concreto”(Metafísica, 1029a, 5).  E uma vez que “a matéria é uma coisa, a forma uma segunda e o composto de ambas uma  terceira, e todos os três são substâncias, a própria matéria é em certo sentido parte de uma coisa, e em outro sentido não o é, mas apenas os elementos que consiste a definição da forma”;  Ou seja, “o bronze é uma parte da estatua realizada, porém não da estatua tomada no sentido de forma ( com efeito, é a forma, ou a matéria dotada de forma, que devemos entender pela coisa, mas nunca o elemento material em si mesmo.”(Metafísica, 1035a,2)  Busca-se, pois, compreender “a causa da matéria, isto é, a forma pela qual a matéria é determinada coisa:  e esta é, justamente, a substância”(Reale, 1994, p.360).  Portanto, o real para Aristóteles não é nem a matéria nem a forma, mas uma composição entre forma e matéria.  

            

Em suma, pode-se concluir que o todo não é apenas a justaposição das partes que o compõe, pois, quando estas se unem para formar o todo ocorre uma modificação qualitativa.  Assim, todas as partes estão ligadas entre si numa indissolúvel unidade, de sorte que cada uma delas é essencial e indispensável e possui uma “função” determinada e insubstituível a tal ponto que uma falta pulverizaria a unidade do todo e uma variação geraria a desordem.  Isto significa que as partes ligadas e unidas entre si, constituem e delineiam  o todo, ou seja, a integridade do  todo resulta da conexão das partes entre si.  E cada parte do todo só tem realmente valor quanto ligada a esta totalidade; ou seja, o todo - além de ter as suas partes ordenadas, possui uma grandeza que não é qualquer - interage organicamente com as suas partes.  Para compreendê-lo é necessário a compreensão da sua organização interna. Portanto, para provar a atualidade de tal conceito basta  nos reportar ao que diz Luigi Pareyson acerca do tema, mesmo que tal conceito aristotélico não tenha sido intencionalmente para a arte, mas sim para a natureza, “porém a profunda intuição do seu pensamento nos autoriza a extrapolar rumo a criação artística [...] pois, Aristóteles concebeu a natureza precisamente como uma espécie de arte.  A criação artística se converte assim em produção de objetos dotados de uma estrutura e, portanto, de uma economia interna, ou seja, de seres autônomos, que exigem que sejam compreendidos e julgados em função de sua própria organização, sem referências externas”(Pareyson, p.89)


Bibliografia

ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Ed. Globo, 1960
_____________.   Poética. In: Os Pensadores/Aristóteles. São Paulo: Abril Cultural, 1973
GRASSI, Ernesto.Arte y mito. Buenos Aires, 1968
LOUIS, Pierre.  La découverte de la vie. Paris:  Hermann, 1975
REALE, Giovane. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993(vol.I), 1994(vol. II)
PAREYSON. Luigi. Conversaciones de Estetica. Madrid: La Balsa de la Medusa/Visor, 198