Empirismo, Inatismo e Educação
Durante muito
tempo, a Filosofia tentou solucionar um dilema: como podemos explicar a
natureza dos princípios racionais?
Inicialmente,
podemos afirmar que a razão / o raciocínio se constitui como uma forma de
conhecimento discursivo que se faz por meio da palavra (faculdade de julgar). Para
compreender o mundo, para organizar o caos, a razão supera as informações
concretas e imediatas que recebe, organizando-as em conceitos ou idéias gerais
que, devidamente articulados podem levar à demonstração e a conclusões que se
consideram verdadeiras.
O Conhecimento discursivo é o
conhecimento mediato. É aquele
conhecimento que se dá por meio de conceitos = é o conhecimento que se dá/ se opera por etapas, por encadeamento
de idéias, de juízos e raciocínios que levam a determinadas conclusões. A razão
precisa realizar abstrações (abstrair = isolar, separar de) e a lei cientifica
é abstrata
Durante séculos,
a filosofia oscilou entre uma resposta fundada no inatismo e outra desenvolvida
a partir do empirismo[1]
Para
o empirismo, o saber tem inicio pela experiência dos sentidos / das sensações.
Os objetos exteriores a nossa mente nos excitam. As sensações se reúnem e
formam uma percepção; isto é, percebemos uma coisa ou um único objeto que nos
chegou por meio de sensações diversas. As idéias, que nos foram trazidas pela
experiência, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os
pensamentos. É a experiência que marca no nosso espírito as idéias. A razão vai
associá-las, combiná-las ou separá-las, criando os nossos pensamentos. Para os
defensores do empirismo,
[1] Nós podemos apreender tanto real pela razão como
pela intuição. O encaminhamento do texto seguirá os critérios indicados pela lógica
da razão e não pelos da intuição.
“a razão, a verdade e as idéias
racionais são adquiridas por nós pela experiência. Antes da experiência,dizem
eles, nossa razão é como uma folha em branco; uma tabula rasa onde nada foi
gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a
experiência venha escrever na folha, gravar na tabula, dar forma à cera. A
razão é uma maneira de conhecer e a adquirimos (por meio da experiência
sensorial) no decorrer de nossa vida.”[1]
Em
suma, o conhecimento para o empirismo só tem inicio após a experiência
sensível. A reflexão se reduz à experiência interna do resultado da experiência
externa produzida pela sensação. Há um grande destaque ao papel do objeto. E a
razão se apresenta subordinada ao trabalho da experiência. Como exemplos de
teorias que podem ser identificadas com o empirismo podemos citar o
positivismo, o behaviorismo e a instrução programada.
Segundo
Marilena Chauí, segundo o inatismo,
“ao nascermos trazemos em nossa
inteligência não só os princípios racionais mas também algumas idéias
verdadeiras, que, por isso, são tambéetm inatas. O empirismo, ao contrário,
afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas idéias, é
adquirida por nós pela experiência.”[2]
O
inatismo não parte da realidade do mundo. Busca no sujeito os critérios para o
estabelecimento da verdade. No idealismo / subjetivismo, o intelecto é superior
aos sentido. As idéias são intemporais e permanentes. A realidade está sempre
primeiramente no sujeito e se apresenta na forma de idéias. As idéias gerais
não derivam do particular, mas já se encontravam no espírito como instrumento
de fundamentação para a apreensão de outras verdades. Por serem inatas, não
estão sujeitas ao erro e o critério para se chegar a verdade está em nosso
próprio espírito-razão[3].
Mesmo nos dias
de hoje, existe a crença em “uma essência humana” que propõe-se efetivar..
Primeiro, supõe-se que o homem a tenha e que ela seja imutável; segundo, supõe-se
que ela seja tal qual foi formulada por aquela cultura, naquele tempo. E é
atribuído à educação a função social de realizar um certo ideal do que o homem
deve ser
Dentre
os filósofos que se destacam pela abordagem inatista podemos citar Platão e
Descartes. Este último tratou do tema principalmente nas obras Discurso
do método e Meditações metafísicas.
Nessas
obras, Descartes nos mostra que o nosso espírito possui três tipos de idéias
que se diferenciam segundo sua origem e qualidade. São elas: idéias adventícias,
idéias fictícias e idéias inatas.
As
primeiras, as adventícias, são aquelas que nos chegam a partir da nossa
sensação. São percepções e lembranças. São idéias que nos vêm por termos tido
experiências sensíveis das coisas a que se referem.
“São, de um lado, as idéias das
qualidades sensoriais – a cor, sabor, textura, tamanho, lugar, etc. – e, de
outro, as idéias das coisas percebidas por meio dessas qualidades. São também
as opiniões formuladas a partir dessas idéias ou nossas idéias cotidianas e
costumeiras, geralmente enganosas ou falsas, isto é, são opiniões recebidas e
que, em geral, não correspondem à realidade das próprias coisas.”[4]
Já o
segundo tipo, as idéias fictícias, são aquelas que elaboramos a partir da nossa
imaginação, criatividade e fantasia. Nós somos capazes de compor seres
fantasiosos e mágicos com partes de seres que existem verdadeiramente. Quem
nunca imaginou fadas, cavalos alados, dragões ou super-heróis?
Tais
idéias nunca poderão ser consideradas verdadeiras, visto que não tem
correspondência com o mundo concreto.
O
terceiro tipo (e o mais importante) é composto pelas idéias inatas. Estas são
inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Por
exemplo, os princípios da razão – identidade, não-contradição, terceiro
excluído, razão suficiente – são idéias inatas. Também são inatas idéias
denominadas pelo pensamento cartesiano de noções comuns da razão: “o
todo é maior que as partes”, por
exemplo.
São
também inatas as idéias simples (= idéias não compostas) conhecidas por
intuição[5]
intelectual (por exemplo: o cogito – “penso, logo existo”). Por serem simples,
as idéias inatas são conhecidas por intuição e são também o ponto de partida
para a dedução racional e indução, que nos possibilita conhecer as idéias
complexas ou compostas.
“As idéias inatas, diz Descartes,
são ‘a assinatura do criador’ no espírito das criaturas racionais, e a razão é
a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Visto que as idéias
inatas são colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto
é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a
elas, podemos julgar quando uma idéia adventícia é verdadeira ou falsa e saber
que as idéias fictícias são sempre falsas (não correspondem a nada fora de
nós).”[6]
Vocês
poderão se perguntar qual a relação do conceito filosófico do inatismo com a
educação e a prática pedagógica? Quem poderá nos responder é o filosofo Paulo
Ghiraldelli Jr., com a sua obra História da educação brasileira[7].
Anteriormente,
nós já havíamos citado as visões positiva e negativa da infância. Para o
filósofo,
“Essas visões da infância têm uma
íntima ligação com as posições filosóficas elaboradas no inicio dos tempos
modernos. Do resultado da relação dessas posições filosóficas com as
finalidades da educação postas por essas configurações origina-se ao menos duas
grandes filosofias da educação: a filosofia (da educação) de René descartes
(1596-1650), tipicamente iluminista, e a filosofia (da educação) de Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), com indicações que apontam para o Romantismo. Essas
concepções filosóficas não aparecem apenas como ligadas exteriormente a tais
configurações, mas ajudam efetivamente na própria formulação conceitual dessas
configurações de infância e de educação”.
Tanto para Descartes quanto para
Rousseau a tarefa do pensamento e, em especial, a tarefa da filosofia, é a
busca da verdade por meio da razão – nisso eles se mantém adeptos de uma
definição clássica da filosofia. Perguntam, então, o que impede ao homem saber
decidir se um enunciado é falso ou verdadeiro. Criam uma explicação para o
erro.
Para o cartesianismo, o erro está
na imaginação, nas sensações e, principalmente, na preponderância da vontade
sobre o entendimento, fazendo com que os juízos apressados. O homem assim faz,
segundo tal acepção, porque ainda não conseguiu se libertar de atitudes que são
próprias das crianças – atitudes infantis. Nesse caso, a atitude de dar crédito
ao sonho e as sensações, não sabendo usar a razão despida de imagens, é vista
como típica da infância o fato de a vontade impulsionar o homem a tomar
decisões antes de o entendimento ter formulado o que é correto, também é uma
atitude infantil. Assim, a infância é tomada como não sendo uma boa fase.
Quando mais cedo o homem escapar dela, menos levará consigo resquícios de
atitudes que atrapalharão o seu juízo. A infância, portanto, deve passar o
quanto antes.
Rousseau, diferentemente,
acredita que a busca da verdade, antes de passar pela razão, depende de instâncias
morais. Para o rousseaunismo, o oposto da verdade, o erro, não é somente a
falsidade, mas a mentira. E quem não mente? A criança não mente – diz o
rousseaunismo. Pois para Rousseaua natureza é intrinsecamente boa e a criança é
o ser ainda não maculado pela cultura, o que está mais próximo da natureza, e,
portanto, o mais apto a poder chegar a verdade. Assim, quanto mais tempo a
infância durar, mais o homem adulto ficará contaminado pelo vírus da
ingenuidade e da bondade, essenciais na vida adulta para, não maculando a visão
moral, não macular a razão.
Como essas filosofias da educação
moderna – iluminista e romântica – se consubstanciam em pedagogias, no sentido
mais estrito desse termo? No caso da educação e, digamos, no caso da educação
sistemática e escolar ou para-escolar, a filosofia da educação moderna prepara
procedimentos pedagógicos em um padrão mais simplificado, normativo. São esses
padrões que, em geral, denominamos de pedagogia, no sentido restrito e mais
comum.”[8]
GHIRALDELLI JR
faz referência a duas imagens. A primeira datada é um sinete da Escola gratuita
de gramática de Lowth. Datada de 1554, no dístico interno lemos: “quem poupa a
vara odeia a criança
[1] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo:
Ática, 2002. p. 71.
[2] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo:
Ática, 2002. p. 69.
[3] Percebemos aqui a crença na idéia da existência
de uma natureza humana: algo essencialmente humano. A doutrina que defende que
certos particulares têm certas propriedades essencialmente ao passo que têm
outras propriedades apenas acidentalmente é conhecida como essencialismo. Por
exemplo, na cidade grega de Atenas, viveu um famoso filosofo: Sócrates. Podemos
afirmar que Sócrates é essencialmente humano, mas só acidentalmente
vivia em Atenas. Então, Sócrates não poderia não ser um ser humano, mas
poderia não ter vivido em Atenas. Ou seja, o fato de ser homem é necessário. Enquanto
que a nacionalidade desse homem é contingente.
Entretanto, muitas
criticas foram feitas a tal abordagem. Isso porque, no mais das vezes, os
empreendimentos educacionais estabelecidos a partir dessa teoria são equívocos
na prática, pois resultam defendendo interesses particulares, locais, como se
fossem universais. Por exemplo, quando o grego pensa “o ser” ou “as virtudes
humanas”, pensa o “ser grego” e as “virtudes gregas”
[4] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo:
Ática, 2002. p.70.
[5] Uma Intuição
é uma forma de conhecimento imediato (= feito sem intermediário; “visão
súbita”). É inefável; inexprimível. Ao
mesmo tempo, é importante por ser o ponto de partida do conhecimento, a
possibilidade da invenção, da descoberta, dos grandes “saltos” do ser humano. A
intuição pode ser dividida em três tipos básicos: intuição
sensível – é o conhecimento imediato que nos é dado pelos órgãos dos
sentidos: sentimos calor; vemos a cor das flores; ouvimos o som da música; intuição inventiva – é a do sábio, do artista,
do cientista, quando repentinamente descobrem uma nova hipótese, um tema
original; intuição intelectual – é a que se esforça por captar diretamente a
essência do objeto.
[6] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo:
Ática, 2002. p.70.
[7] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação
brasileira. São Paulo: Cortez, 2006.
[8] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação
brasileira. São Paulo: Cortez, 2006.-p. 20.
figura 1
A segunda imagem
é um quadro de 1793. intitulado “Professora Republicana.
figura
2
Diz GHIRALDELLI
JR que tais imagem podem gerar uma certa estranheza. Quem conceberia nos dias
de hoje um estabelecimento de ensino que propaga a idéia de castigos físicos
como forma pedagógica de ensino. Também, é estranho uma imagem de uma professora
mantendo uma relação tão próxima e tão individualizada. Para o autor, “são
gravuras representativas de certo cuidado especifico com as crianças, um
cuidado que depende da existência, na mentalidade das pessoas, de alguma noção
de infância e, portanto, de algum tipo de consenso sobre educação.”[1]
“O sinete da ‘Escola Gratuita de
Gramática de Louth’ mostra que o professor impõe aos seus alunos uma disciplina
que, no limite, contempla a punição física. Tal punição tem como objetivo
tornar a vontade infantil disciplinada. Se, em Descartes, a ultrapassagem do
entendimento ou da razão pela vontade é exatamente o que conduz o ser humano ao
erro, então nada melhor para a educação se pudermos serenar os ânimos do
desejo, que é corpóreo, de modo que a vontade possa se exercer com comedimento.
E estaremos dando à vontade a chance de se comportar racionalmente, com
autonomia, isto é, como poder racional sobre si mesma. Torná-la autônoma –
mesmo que no limite isto implique em punição física, é colaborar para a atuação
do entendimento mais livre e mais capaz, portanto, é colaborar com a libertação
do individuo em relação ao erro. Com a vontade perfeitamente racional, e os
desejos dominados, o entendimento pode julgar com clareza e distinção. O
aprendizado do conhecimento verdadeiro, o que”. inclui a capacidade de poder
julgar o que é verdadeiro e o que é falso, depende de uma disciplina da razão
que é também aprendida – a razão perfeita é a harmonia entre vontade racional e
entendimento. O professor, com regras externas, colabora para a internalizarão
de regras, possibilitando o surgimento do homem a partir da finalização da
infância.
O quadro ‘Professora
Republicana’, ao contrário do sinete, mostra a fruição em comum de um texto.
Educador e educando comungam um texto (um exame visual minucioso poderia deixar
ver que o texto é a ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem, usada como
cartilha). Todavia, há certas ambigüidades na gravura, muito provavelmente
propositais, que dizem mais do que o titulo do quadro. O garoto parece muito
jovem para saber ler. Seu rosto é o de uma criança que, nos dias de hoje,
chamaríamos de pré-escoar. Então, o papel que ambos seguram é simbólico (ainda
mais em se tratando mesmo da ‘Declaração dos direitos do Homem’). Por outro
lado, a professora é mesmo professora? Ela contém traços de mãe e de moça
sensual. Aparece como mãe na medida em que está próxima demais da criança;
aliás, poderíamos até arriscar que a criança está no seu colo. Ela é sensual,
mostrando-se atrativa, convidando para a comunhão de uma história, para o
compartilhamento de uma atividade aconchegante. Cabelos levemente desalinhados,
brinco exposto e uma claridade sobre o pescoço que força o nosso olhar para os
seios. Os seios, por sua vez, através do jogo de luz e sombra do quadro ganham
relevo. Ou seja, a moça é alguém com quem fazer algo íntimo, como por exemplo,
ler uma historia ou apreciar uma gravura, deve ser uma coisa bastante
agradável. Por fim, não é uma moça comum, nem uma mãe comum. O quadro lembra,
para uma boa parte das pessoas, muitas vezes menos as gravuras clássicas e mais
o quadro da Virgem Maria com o menino Jesus. E isto santifica a relação entre
ambos – a relação é prazerosa, mas antes de tudo pura, pois há pureza de
coração em ambos os parceiros. A relação é mesmo muito íntima. Se há algum
aprendizado, ele não está sendo feito de modo direto, pois a moça, a adulta,
não está falando algo à criança, mas ao contrário, ambos apreciam algo que está
no papel, algo que, de certo modo, só eles pode ver, e nós não inteiramente!
Ambos, garoto e professora, contém sorrisos monaliseanos em suas bocas. Há uma
satisfação na comunhão do que está no papel, o que seria o texto. As mãos de
ambos se juntam para segurar o papel. A educação que está ocorrendo ali depende
da experiência da comunhão de subjetividades puras e sinceras. Caso contrário
não haverá educação. Aliás, em se tratando do texto ‘Declaração Universal dos
Direitos do Homem’, o termo ‘experiência da comunhão’ significa uma experiência
subjetiva e intersubjetiva ao mesmo tempo, ou seja, uma psique que se enlaça a
outra por meio de um elemento comum posto socialmente: a realização de uma
sociedade livre. A verdade não está aparecendo para eles por causa de uma
disciplina imposta ‘de fora para dentro’, mas por causa de uma disciplina que
está sendo trazida ‘de dentro para fora’. A verdade surge da relação honesta,
íntima que cada um tem com o que está no papel e que cada um tem com o outro;
ambos são companheiros de viagem.
O primeiro quadro diz
respeito a um modelo de ensino em que poderíamos encontrar a tradição cujo
representante seria o cartesianismo; e o segundo quadro diz respeito a um
modelo de ensino no qual poderíamos ver a tradição cuja inspiração seria
rousseauísta. O primeiro, tem ver com o que mais tarde foi batizado como
‘pedagogia tradicional’. O segundo, tem a ver com o que mais tarde se
autodenominou de ‘pedagogia nova’ (isso em meados do XIX e mais propriamente no
século XX). Essas pedagogias, assim representadas, são as versões populares da
pedagogia moderna – elas são o nosso senso comum ocidental sobre as posturas
pedagógicas possíveis. Em ambos os modelos, a instituição escola aparece como
imprescindível.”[2]